#06 Patrick Bateman está em todos os lugares.
Eles choram, eles gritam, eles fazem podcast.
Primeiro, uma nota de agradecimento.
Essa semana no Apoia-se ganhei cinco reais. E não, não foi a minha avó me dando troco. Foi alguém que leu, sentiu e quis apoiar. Eu ainda não superei. Parece pouco, mas pra mim foi como receber um abraço de alguém que entendeu tudo. Isso aqui é sobre conexão. Sendo assim, do fundo do meu útero, muito obrigada Andre Thimoteo!!
“Existe uma ideia de Patrick Bateman, uma espécie de abstração, mas não existe um eu real: apenas uma entidade, algo ilusório. E embora eu possa esconder meu olhar frio, e você possa apertar minha mão e sentir carne tocando a sua, e talvez até perceba que nossos estilos de vida provavelmente são parecidos... eu simplesmente não estou lá.”
Se você existisse em uma realidade onde seus comportamentos mais absurdos fossem suavizados, suas opiniões tratadas como importantes, seus atos levemente gentis os mais valorizados, e se acima de tudo, a sua vida fosse livre das micro e macro agressões e dos prejulgamentos que todo o resto da humanidade parece sofrer, você não se sentiria ameaçado se um grupo de pessoas se levantasse contra o seu ego, que de tão inflado é facilmente perfurado? Se tudo progredisse e você se tornasse só mais uma pessoa, que é arduamente julgada por seus crimes e dificilmente consegue fazer com que a própria voz seja ouvida, você também não lutaria para que as coisas voltassem a ser como eram antes?
Particularmente, eu não consigo responder essas perguntas. Sendo uma mulher queer, os poucos privilégios que me restaram nunca me fizeram menos atenta aos outros. Ao contrário disso, eu carrego um tipo de culpa invisível na boca do estômago toda vez que converso com aqueles com quem a vida é tão árdua. A minha existência é cercada por condições, nascer impune não me parece uma opção palpável em nenhuma dimensão universal. Todavia, sei exatamente quem consegue responder sem hesitação. Eles estão espalhados por todos os lugares e nós vemos exemplos deles surgirem e desaparecerem, mas nunca morrerem.
Um retrato disso, muito comentado nesses últimos meses, escala homens até o topo de montanhas com a promessa de que eles encontrem a si mesmos. Os ‘legendários’ são um grupo religioso que prega algo muito simples de ser aceito: a redenção performática masculina. Um aparente sacrifício feito por um homem, e ele volta para sua casa, com sua esposa e seus filhos, uma pessoa nova. É aplaudido, acolhido, respeitado e perdoado. Subiu uma montanha para lutar por sua família, aquela que ele nunca deu o devido valor, até hoje. Homens em crise que precisam de outros homens para lhe dizerem quem são. O curso é segregado por gênero, e como eles mesmos dizem, é uma forma do homem retomar o seu lugar de liderança em sua vida pessoal e na sociedade. De lá eles são a cabeça de tudo, e daqui nós viramos o pescoço. Ou melhor, aquilo que não pensa, não fala, não ouve, e por consequência, não reclama.
Existe um inimigo em comum dentro disso: a feminilidade e tudo que envolva a figura da mulher. Os líderes desses grupos, se alimentam da insegurança de outros homens que projetam um ideal em suas carcaças malhadas e vozes firmes. Homens esses, que têm medo de terem perdido aquilo que acreditam ser espiritual, biológico e inato neles: a agressividade.
Em uma civilização, é de senso comum que é preciso se livrar de algumas características para manter a convivência, ou melhor, nem tê-las para começo de conversa. Afinal, os crimes, a violência gratuita, e a maldade não são vistas como algo que um bom cidadão carregaria consigo. Assim, nós nos desfazemos de tudo isso para que possamos viver em harmonia e sermos aceitos. Então, esses gurus vendem a ideia de que se você renunciar quem você é, e toda sua passividade, que é vista como um trejeito feminino, e se adequar ao modo de vida deles, você vai pertencer a um grupo ideal e recuperar um prazer construído na ilusão de que os homens há alguns anos atrás eram mais homens do que são hoje, pois negavam em si tudo aquilo que existe nas mulheres.
O tão famigerado ‘café com teu pai’ é um pouco diferente disso. Apesar de também vender um curso (que surpresa), e cobrar para avaliar mulheres por seus perfis do Instagram, ele cria conteúdo sobre relacionamentos heteronormativos e impõe suas opiniões sobre os homens e as mulheres na sociedade. Nem todo o discurso do Breno Faria, a tal figura paterna, é de todo errôneo. Isso pode soar como loucura, mas é verdade. Acreditando estar fazendo o papel de um herói dentro das relações modernas, ele confirma algo interessante: os homens usam as mulheres como um objeto, e por dentro, são tão vazios quanto um balão no fim de uma festa infantil. A graça é que ao invés de chamar isso pelo o que é, ou seja, a velha e boa misoginia, ele decide contar, para si mesmo e para o mundo, a maior falácia da história: os homens são assim, e não tem o que fazer. Então, seus conselhos seguem sendo para as mulheres.
“Mulheres, descubram o que os homens pensam e criem suas estratégias. Mulheres, não postem fotos tão nuas pois vocês vão atrair homens ruins e a culpa da maldade deles vai ser de vocês. Mulheres, vocês são burras. Mulheres, os homens não ouvem, eles precisam ser adestrados, entendam de uma vez por todas. Mulheres bem sucedidas, escondam seu sucesso, nós não aguentamos sentir que somos menos importantes que vocês. Mulheres, os homens são a chave e vocês o cadeado, e eu não sei exatamente o que essa analogia barata significa, pois a verdade é que eu tenho muito receio de que minha esposa tenha transado tanto na vida e que isso faça ela perceber o quão medíocre eu sou na cama, então, eu meço o valor dela como ser humano em quantas experiências sexuais ela já teve. Mulheres tatuadas e com cabelos coloridos, admitam, vocês não são amadas por seus pais e por isso fazem tantas mudanças na própria aparência, mas também se lembrem, as minhas tatuagens são uma expressão pessoal e artística. Mulheres, eu sou tão vazio de sentido que baseio a minha experiência na Terra no meu gênero, e eu quero basear a sua no seu”.
Tudo isso que nós ouvimos nesses últimos meses e toda essa escassez de substância humana própria que a maioria dos homens carrega, me remeteu a um personagem que aparenta ser tão caricato, e que no fundo, representa a imagem perfeita de um homem moderno, bem sucedido e patético. Tanto representa, que por um bom tempo foi uma inspiração para muitos jovens garotos nas redes sociais que não entenderam a sátira de ‘Psicopata Americano (2000)’. Pois Patrick Bateman é tão bem construído, que poderia ser associado a pelo menos um homem que você já conheceu na vida, ou vários.
Bateman é superficial. Ao longo de toda a obra, ele age como uma garota de ensino médio dos besteiróis clássicos que crescemos assistindo. Tem birras com colegas de trabalho que considera rivais. Com os homens em sua volta, compara seus ternos e cartões de visita. Repara em cada detalhe das roupas de sua secretária, e em seu extenso apartamento, mantém pornô passando na TV o tempo inteiro como uma tentativa de reafirmação da sua masculinidade que parece escorrer por seus dedos. O filme também contém uma cena marcante de sua longa e minuciosa rotina de cuidados com a pele e com o físico, tão obcecado, que nós mulheres o entendemos mais do que qualquer homem um dia poderia. Ele é noivo de uma mulher que é tão indiferente a ele quanto ele é a ela. Se delicia das músicas mais românticas enquanto as descreve lutando para encontrar um tipo de humanidade no outro e em si. Ele luta por piedade e vitimismo. Recorrentemente, convida prostitutas para sua casa e transa agressivamente com elas enquanto faz poses e se encara fixamente no espelho e para uma câmera de gravação. Quando um de seus colegas se abre e revela que teve interesse em Patrick a vida inteira, ele sente nojo, como quem sente desgosto dos próprios desejos. Não tem amigos e se vê distante de todos em sua volta, até mesmo de outros homens. E ele mata. Ele é um assassino, de mulheres e de homens, e enquanto se vê como um ser profundo, mata por mesquinharia e por busca de um escape de uma sociedade fútil e vazia de sentidos.
Os diversos garotos e homens que citei, se espelham nele como fazem também com os coaches e influenciadores que se espalham como ratos de esgoto por toda a internet. Se apegam nisso pois querem um motivo para demonstrar uma violência e uma agressividade diante de um mundo que muda, e que consequentemente os deixa inseguros. Pois algo novo significa também algo desconhecido que pode enfrentar e questionar seus comportamentos e ideologias.
Ao final da história que acompanhamos, aparentemente, todas as pessoas que Bateman matou estão vivas. Vivem suas vidas e sequer cruzaram com ele daquela forma. Tudo parece ter acontecido dentro da sua mente, e ele se dilui no mundo como quem nunca existiu. Mais um entre todos os outros. As pessoas não o levam a sério, e aquilo que ele pensava ser uma característica especial era mais uma performance. Sua dor e a sua vida são pautadas por questões tão vazias que precisou, durante todo esse tempo, se fixar em violentar outros para se sentir parte de algo relevante. Ele entrou no âmbito das montanhas, das análises estereotipadas de gênero, das participações em podcasts apresentados por entrevistadores asnos, e da busca insaciável por uma identidade que foi construída no mais cruel e bruto vazio.
"Não há mais barreiras a serem cruzadas. Tudo o que tenho em comum com os incontroláveis e insanos, os cruéis e perversos, todo o caos que causei e minha total indiferença por ele, agora eu superei. Minha dor é constante e aguda, e eu não espero um mundo melhor para ninguém. Na verdade, quero que minha dor seja infligida aos outros. Não quero que ninguém escape. Mas mesmo depois de admitir isso, não há catarse. Minha punição continua a me escapar, e eu não obtenho nenhum conhecimento mais profundo sobre mim mesmo. Nenhum novo conhecimento pode ser extraído do que contei. Esta confissão não significou nada.”
É com essa citação que uma das obras mais populares dos últimos anos termina. A ironia persiste: a dor masculina performada não significa nada. Por si só, ela não carrega sequer o mais básico sentido lógico. Os homens performam poder e sofrimento, e enquanto as únicas a de fato se importarem com isso são suas mães, todo o resto apenas nos ameaça e, diariamente, nos violenta. Somos sempre as primeiras a sofrer pelo mal que, neles, será esquecido. O que nos resta é sobreviver ao espetáculo da masculinidade ferida.
Se essa leitura te deu um nó na cabeça e uma leve crise existencial, considere me apoiar. Não com palmas (ainda que eu adore aplausos), mas financeiramente. O Apoia-se existe pra isso: ajudar uma neurótica sentimental e cínica que escreve demais, sente demais e come batata frita pensando em revolução. Apoiar é um jeito de dizer: “continua, eu tô contigo”. E eu prometo que continuo. Mesmo chorando. Mesmo tremendo. Mesmo menstruada. Me apoia aqui: Neuróticos Apoia-se.
Ah, e se você quiser que eu te ajude, use algo que ninguém mais tem. Meu crochê na Shopee é arte portátil. Feita à mão, com muita neura. RIOT.
Com todo o respeito, mas acho que está faltando uma guerra para esse tipo de homem ir!
Eles estão perdidos, atoa, ociosos, cheios que frustrações reprimidas.
E como ser um ser humano funcional não é atrativo para esse tipo de homem, já que lavar uma louça, cuidar da família, limpar a bunda dos filhos não é o que eles querem, vamos para a guerra meus queridos! Vão lá explodir umas coisas para ver se a vida faz mais sentido, pois não dá para ficar atoa assim em um mundo em movimento. É dessa ociosidade que surgem “legendários” da vida. Bora resolver isso!
PS: Esse comentário não é para homens normais, funcionais e equilibrados, apenas para o oposto disso.
Ótimo texto amiga! Essa porra de legendários tirou minha paciência pqp